Linux em casa, na escola e no trabalho, revisitado

Artigo publicado originalmente em minha coluna na dicas-l, de Rubens Queiroz de Almeida.

Há 10 anos, motivado pelo que eu encarava como um grande equívoco, escrevi um artigo criticando o modelo de informatização das escolas públicas do PROINFO. O artigo pode ser encontrado aqui e aqui.

No final dos anos 90 a grande representante do modelo de software proprietário era a Microsoft. Seu marketing fazia de tudo para provar que a interface gráfica significava um grande avanço em produtividade e que a linha de comando era um anacronismo, uma remanescência da “era DOS” e dos antiquados mainframes. Vale lembrar que os Unix (Solaris, AIX, o moribundo SCO e o então adolescente GNU/Linux) eram os grandes concorrentes e que parte da força e versatilidade destes residia (e reside) em suas linhas de comando.

Eu fui um aluno de escola pública. Me transferi no meio do segundo ano do ensino médio porque uma greve de professores ameaçava meu ano letivo. O ano e meio seguintes foram toda a minha educação em escola particular. Tinha um objetivo: cursar engenharia de computação na Unicamp. Lutei contra todas as probabilidades e venci, com sacrifícios que só eu sei quantos foram para um garoto de 16,17 anos.

Em vez de renegar os anos de escola pública pelos quais passei, sempre tive o desejo de fazer algo por ela. Na Unicamp encontrei o sistema GNU/Linux e ao ler a GPL pela primeira vez, descobri que havia solidariedade em um meio que, para os outros, era apenas números e número$. Eu queria fazer minha parte para tentar entregar um mundo melhor do que eu recebi. Até hoje é óbvio para mim que consertar a educação é a forma mais eficaz de melhorar a qualidade de vida das gerações futuras.

Este artigo nasceu como “versão texto” de uma palestra que eu dei no Centro de Computação da Unicamp a convite de Rubens Q. de Almeida, em que eu inocentemente expus meu ponto de vista sobre os benefícios da linha de comando para o exercício da lógica e como estes benefícios mereciam ser levados aos alunos da rede pública. Qual não foi meu pânico ao ver professores meus sentados na audiência daquela palestra? Mal sabia eu que em pouco mais de um ano estaria falando para 1500 pessoas na primeira palestra de um evento chamado Forum Internacional de Software Livre (FISL) em Porto Alegre.

O governo do Rio Grande do Sul, comandado pelo então governador Olívio Dutra já tinha em seu gabinete e na empresa de processamento de dados PROCERGS) pessoas que queriam entender o software livre e viam aí oportunidade para o que viria a ser chamado depois de “inclusão digital”. Este foi certamente o meu maior momento e minha maior contribuição pessoal ao software livre. Como a bola branca que se choca contra o triângulo de bolas coloridas em uma mesa de bilhar, eu fui diretamente ao encontro destas pessoas. Dispararadas em todas as direções, várias acabaram “nas caçapas”.

Na minha primeira reunião com o governo do Rio Grande do Sul em Julho de 99 conheci e falei sobre software livre e sobre o modelo de desenvolvimento colaborativo do Debian GNU/Linux para Marcelo Branco, Marcos Mazzoni, Renato Lages e Mário Teza, para citar alguns (que dispensam apresentação para quem acompanha o movimento do software livre brasileiro nos bastidores). Deste “choque” no melhor sentido da palavra, ganharam substância o projeto Rede Escolar Livre do RS, e o FISL. A dicas-l possui um documento muito importante na documentação da história desses eventos, uma entrevista que fiz com Ronaldo Lages, vale a pena ler de novo.

O projeto Rede Escolar Livre floresceu. Escolas públicas da periferia de Porto Alegre ganhavam computadores reciclados, com software livre. O primeiro acesso à internet de muitas crianças foi feito através de um navegador Mozilla rodando sobre desktop Gnome e Debian GNU/Linux. Economia de dinheiro público, um potencial educacional muito grande, funcionalidade equivalente à dos sistemas proprietários, estabilidade superior, mas durou pouco.

E durou pouco graças a uma doença crônica deste país: a falta de continuidade dos projetos públicos. A inexistência da noção de que o estado é contínuo. Os mandatos dos cargos públicos são finitos, mas o estado deve prevalecer. Enquanto este país confundir gestão com governo e “motorista” com “dono de ônibus” os governos serão meros instrumentos de poder nas mãos dos que os conduzirem. O “dono do ônibus” é o cidadão, prezados governantes. Vocês apenas o dirigem por algum tempo e devem fazê-lo da forma mais responsável possível, entregando um veículo bem conservado para o próximo motorista. Lembrem-se disso.

Muita coisa muda em 10 anos, mas não tudo. A Microsoft não possui mais a relevância que tinha. A história se repete: Qualquer empreendimento humano revoluciona, começa a crescer, se torna grande e engessado e deixa de inovar, até que um novo empreendimento revolucione, comece a crescer… não que a Microsoft tenha se tornado irrelevante, ou tenha deixado de possuir o poder que tinha sobre o universo de TI, mas agora ela não é mais a única e não possui mais a facilidade que tinha de conduzir o mercado. Qualquer coisa que antes as pessoas precisavam fazer com um software microsoft agora pode ser feita com um browser e a internet (e este browser nem precisa ser o internet explorer), agradeçam aos padrões abertos.

Mas então, se hoje nos comunicamos com o mundo através da janela do browser, por que insistir em pagar pela infraestrutura? Por que excluir funcionalidades e conceitos tão importantes e modernos como a colaboração, o compartilhamento e a produção coletiva, do currículo escolar? Por que ignorar que a fusão entre a filosofia e a técnica é o que moveu o mundo nos últimos 20 anos e o moverá por ainda tantos outros? Por que ir contra a corrente das tendências e substituir todos aqueles conceitos modernos pelo anacrônico modelo dos anos 80? Eu não entendo, eu não entendo.

O Governo do Rio Grande do Sul dá um Passo atrás ao assinar um convênio educacional com a Microsoft, não tanto pelo software em si, mais pelo afastamento do que é importante nos dias de hoje e que será ainda mais nos próximos anos. Não existirá mais “disco”, não existirá mais “TV”, não existirá mais “telefone”, “rádio”, “jornais”, “revistas”. Mas nas escolas de nosso país ainda existirá um modelo de 20 anos atrás sendo ensinado para nossas crianças, com dinheiro que seria muito melhor empregado nas pessoas que são necessárias para que a educação de verdade aconteça.

Obrigado, governantes.


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2 respostas para “Linux em casa, na escola e no trabalho, revisitado”

  1. Avatar de Eduardo Maçan

    Carlos, muito obrigado pelo testemunho. É muito bom ver que (ainda) existem iniciativas deste calibre. Infelizmente a falta de continuidade de projetos independente do sucesso dos mesmos é o que mata tais iniciativas.

    Você concorda ao temer pelo projeto do qual passou a participar, gostaria que não precisasse temer, mas infelizmente…

    Isso dos governos petistas é uma faca de dois gumes. Eu entendo que a filosofia por trás dos softwares livres é de fácil assimilação por alguém que tenha um background “socialista”, mas sempre fui resistente e sonoro opositor à associação software livre – socialismo.

    O software livre não é equivalente ao socialismo porque atua em campo distinto. Software livre não trabalha com a distribuição de capital. A tendência natural do capital é o acúmulo, a percepção de “sucesso” dentro do campo do capital depende deste acúmulor, por parte de indivíduos ou empreendimentos.

    O software livre é um movimento de idéias, e o caminho natural das idéias é a replicação e distribuição. O sucesso no campo das idéias se baseia na capacidade de um indivíduo ou empreendimento em fazer com que suas idéias sejam amplamente divulgadas e prevaleçam.

    O que a gente precisa é aproveitar da maior facilidade de aceitação “filosófica” do movimento do software livre pela esquerda como porta de entrada, mas precisamos trabalhar continuamente pela não “partidarização” de conceitos que são modernos e essencialmente apartidários, que são esses que você menciona.

    Eu não tenho medo de afirmar que a sociedade da colaboração e compartilhamento que está se desenhando tem no software livre seu caminho natural. O duro é fazer com que a tendência prevaleça sobre os interesses ou preconceitos de pessoas ou grupos.

    É uma corrente inevitável. Contrariá-la só pode produzir desperdício e desperdício é tudo o que não precisamos nesse país.

  2. Avatar de Carlos Costa

    Olá, meu caro 🙂

    Aqui em Campinas(SP) tem uma escola muito legal. Uma escola de ensino técnico profissionalizante que utiliza GNU/Linux e outras tecnologias livres. Chama-se CEPROCAMP e é mantida pela prefeitura.

    A minha esposa trabalha há alguns anos com eles. Ela leciona disciplinas ligadas a modelagem e design digital, e utiliza gimp, inkscape e blender nas suas aulas. Ela me disse “eles usam OpenSuse” e também me disse “os alunos são interessados”. Eu fiquei motivado a dividir minhas experiências e me candidatei para lecionar a disciplina de SO para o curso de técnico em informática, e passei. Constatações: Sim, eles usam GNU/Linux para todos os cursos, e tb Openoffice, gimp, inkscape, blender, etc… Detalhes sobre o professor de primeira viagem, visite http://carloscosta.org/2009/03/06/a-minha-primeira-vez-foi-assim/

    Foi muito divertido, os alunos tinham uma gana pelo conhecimento, curiosidade, facilidade de aprendizado, interesse pelos tópicos apresentados, etc. Era uma turma utópica, sonho de qualquer professor experiente. Qualquer um disposto a ensinar, mesmo que pela primeira vez, teria se divertido muito ali.

    Mas o que me chamou atenção foi o fato de como eles se interessaram pelos temas GNU, Software Livre, Open source, Linux, hackerismo. Eles perceberam que tem algo mais além do software, e esse algo além é inclusor, está de portas abertas e desperta o desejo de compartilhamento, de participação: Software enquanto movimento social. Meu caro amigo, você nem imagina o impacto positivo que esses temas tiveram 😉

    O CEPROCAMP foi fundado na prefeitura anterior, petista. O partido político do prefeito atual é ligado ao PT, e manteve a escola do mesmo jeito e seguindo a filosofia original. Talvez, na virada da ciranda politica brasileira, o próximo prefeito venha de um partido contrário a essas idéias, ou tenha interesses de bastidores para migrar para MS, vai saber… corre-se o risco.

    Não é uma questão partidária, não manifesto interesses pelos partidos A, B ou C. É apenas uma constatação: na mão de petista (ou socialistas, se formos ao âmago da questão) foi e é fácil adentrar nas escolas com a filosofia do software livre. Mas são exceções raras. No geral todos ganham com o software proprietário: MS vendendo licença, a empresa que instala/mantém a infraestrutura das escolas, os chamados solutions providers :P, o cara que escreveu o edital e administrou a licitação pública, etc… difícil é romper esse elo vicioso.

    [ ]s

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