Entrevista Com Eduardo Maçan (FreeCode-BR)

Artigo originalmente publicado no site “FreeCode-BR” hoje fora do ar, recuperado através do WayBack Machine. Estou recuperando meu arquivo de artigos e contribuições, quem tiver algo que não esteja no meu blog, por favor, me avise.

1 – Quando foi seu primeiro contato com GNU/Linux?

Foi por volta de 1993, se não me engano o Kernel ainda era o 0.98 ou algo assim. Eu era estudante de Engenharia de Computação na Unicamp e tínhamos laboratórios com estações SunOS que viviam lotados, tinha um sistema de reserva de estações que a gente tinha que obedecer por causa da superlotação, uma vez eu fui tirado de uma estação às 3:00h da manhã por causa de uma reserva, e foi aí que eu decidi que eu precisava de um Unix em casa. Antes disso eu já tinha tido contato com software GNU como o editor emacs e o compilador gcc, mas ainda não tinha me dado conta do que era aquilo, e o que representavam.

2 – Na época porque escolheu o Linux e não outro sistema operacional? Que argumentos você usaria para defendê-lo?

Bem, eu tinha basicamente 4 opções: SCO Unix (caríssimo), o Minix que era um software didático, pago que não servia para uso profissional, digamos assim, e O GNU/Linux e FreeBSD, ambos sistemas relativamente jovens e promissores. Consultei alguns colegas mais experientes e me indicaram o kernel Linux, mas qualquer um dos dois teria sido uma escolha tecnicamente tão boa quanto a outra, o bom do Linux é que segue a licença GPL, o ruim é que seu ícone máximo, Linus Torvalds não dá a mínima para filosofia de Software Livre.

3 – Como sabemos, você é um grande representante da comunidade Debian no Brasil. Como surgiu sua paixão pelo Debian?

Em primeiro lugar, muito obrigado 😀 Bem, até 1996 eu fui basicamente usuário Slackware, e alguns novos “jogadores” estavam no campo, a Red Hat e o Debian. Eu já tinha adquirido conhecimento suficiente para deixar de ser um usuário e começar a contribuir. A Red Hat era uma pequena empresa nos EUA, eu não teria tanta chance assim (talvez até tivesse tido, mas enfim, me parecia que não) de contribuir ou trabalhar pra eles, o slackware é, foi vai ser por muito tempo guiado por um cara só, o Patrick, é ele quem bate o martelo. O Debian além e já contar com um sistema de empacotamento muito acima da média para a época, incentivava a colaboração e todos podiam ser parte do time, isso me motivou, em 96 mudei para Debian, em 1997 era Desenvolvedor, fui um dos primeiros desenvolvedores brasileiros do Debian e praticamente iniciei os trabalhos de tradução do web site entre outras coisas.
Hoje existe um time que se formou sozinho do qual eu vim a fazer parte posteriormente, o Debian-BR que cuida da localização e suporte em português do Debian, tendo presença em diversos estados através de grupos de usuários locais. Eu hoje faço pouco, mas aí está a beleza do trabalho em grupo, o trabalho de um indivíduo é sempre menor que o trabalho dos outros somados.

4 – Qual a maior vantagem que você vê no Debian, quando comparado a outras distribuições?

Sem dúvida o sistema de pacotes robusto, o processo de desenvolvimento completamente documentado, e as ferramentas de apoio para a garantia do padrão de qualidade dos pacotes. Muitas inovações surgiram do Debian, o alien que permite converter entre formatos de pacotes, o sistema de menus do Debian, o apt , o debconf… sem falar que somos os únicos a suportar praticamente todas as arquiteturas suportadas pelo kernel linux. É o mesmo sistema, não importa em que hardware você roda… bem, eu poderia passar o dia listando o que gosto no debian, mas fico com a qualidade e a documentação e prática dos métodos de desenvolvimento.

5 – Atualmente você participa de algum projeto open-source paralelo ao Debian?

Participo como desenvolvedor do Familiar uma distribuição inspirada no debian voltada para computadores de mão, em especial o Compaq (agora HP) ipaq, eu tenho uma maquininha de mão dessas e quando sobra tempo eu ajudo a manter alguns pacotes. Essa máquina ficou apenas 2 semanas com WinCE, mal comprei já instalei GNU/Linux nela na época ainda era arriscado, um erro e você poderia comprometer o computadorzinho e ter que mandá-lo para os EUA para ter a memória FLASH regravada, agora as coisas estão muito melhores, a instalação é bem segura, e o resultado final está bem próximo de ser utilizável por “pessoas comuns”.

6 – O que você acredita que acontecerá com esta variedade de distribuições GNU/Linux existentes hoje daqui a três anos?

Os grandes continuarão, os que se adaptarem bem a seus nichos (como distribuições em um diskette, distribuições específicas para firewall/roteamento etc etc etc) também continuarão… aqueles que não tiverem um propósito que os mantenham vivos restarão como lembranças para os papos de botequim. É um ambiente quase biológico.

7 – Qual sua opinião sobre a iniciativa de quatro grandes distribuidoras de GNU/Linux na criação do United Linux?

Bem, eles estão defendendo o mercado deles e tentando tornar suas distribuições atrativas para um grande número de empresas que não valorizam algo se não tiverem investido uma parte significativa de seu orçamento nela, é um modelo aparentemente viável de negócios e bem lucrativo, não me agrada muito adaptar o software livre às realidades do mercado, eu preferia adaptar o mercado ao software livre, mas enfim, todos tem sua motivação e lugar próprios. Eu torço para que essas empresas tenham êxito, e torço ainda mais forte para que se mantenham respeitosas e fiéis à filosofia por trás do software. Não penso que um sistema possa ser dito “livre” se você ao tirar as partes proprietárias o que sobre não seja funcional, não me sentiria à vontade usando uma distribuição com instalador proprietário por exemplo, você tira o instalador e o que sobra são um monte de pacotes sem propósito. Espero que o pessoal da UL não faça esse tipo de “mistura”, mas… não vou apostar minhas fichas.

8 – Na sua opinião, qual o principal motivo que está levando à adoção do GNU/Linux por órgãos governamentais e grandes corporações?

Eu gostaria de responder que a filosofia do software livre, e a clareza, quase “sinceridade” de seus mecanismos são mais adequados ao papel social, que os governos enxergam a cidadania atrás da filosofia do software livre. Gostaria de dizer que eles sabem da importância estratégica de se ter uma plataforma completa e independente para que se possa desenvolver sem amarras intelectuais, ou fidelidade forçada a fornecedores, mas infelizmente sou obrigado a dizer que é simplesmente por que é “de graça”. O fator econômico tem pesado muito,e a rigidez de fiscalização de licenças proprietárias tem ajudado na migração para uma plataforma legal, barata, robusta e eficiente. Espero que depois de ter o “efeito de curto prazo” satisfeito, os novos usuários se dêem conta das reais vantagens deste tipo de software.

9 – Com o apoio que vários governos vem dando ao GNU/Linux e ao Software Livre, como você vê a política da Microsoft nos próximos anos?

Bem, eles já foram forçados a “mexerem seus traseiros gordos” e reconhecerem que seus produtos não eram seguros, reconheceram que software livre é melhor em aplicações high-end, e como não podem usar seu poder econômico contra software livre, adotaram a única estratégia viável, tentar justificar seus preços e ter produtos comparativamente melhores do que os livres, é uma tarefa difícil, mas que já tem mostrado algum resultado prático. Os apoiadores do software proprietário podem falar o que quiserem, mas eles só estão começando a ter produtos com qualidade beirando o aceitável porque pela primeira vez em 20 anos tiveram concorrência verdadeira. Mesmo quem é contra o software livre se beneficiou dele!

Visando impedir a perda de mercados estratégicos a MS tem ampliado seus programas “educacionais” e beneficentes. Muitas vezes reduzindo preços, criando programas especiais de licenciamento/financiamento… mais uma vez graças à concorrência do software livre. A única coisa que me deixa chateado é ainda ter gente que pensa em informatizar a rede pública com software MS, dar de presente milhares e milhares de novos usuários adestrados a usar seus produtos (e perpetuar o domínio de mercado) e ainda pagar pelo software! Se houvesse alguém realmente corajoso nesses programas de governo exigiria que software para escolas e instituições públicas fosse cedido gratuitamente. Ou isso, ou a alternativa moral e viável, usar software livre. Mas todos sabemos que não é exatamente assim que funciona.

10 – Você acredita que existe alguma possíbilidade da Microsoft tornar-se uma empresa Open-Source?

Em absoluto não.

11 – Com a adesão às regras TCPA (Trusted Computing Platform Alliance) a Microsoft trabalha seu novo sistema operacional, o projeto “Microsoft Palladium”, que terá como foco principal a segurança. Como você acredita que esta nova plataforma será recebida pelos programadores e desenvolvedores, visto a grande restrição imposta pela mesma?

Bem, o Palladium é algo muito perigoso, pois irá tirar ou ao menos reduzir a liberdade do usuário de executar e distribuir seus próprios programas, e isso é fundamental para o software livre, programas certificados poderão ser executados, mas programas feitos por você não poderão ser executados simultaneamente com programas “certificados”, ou você poderia fazer um programa que captura a tela continuamente e “grava” um vídeo protegido sendo executado por outro programa por exemplo… tudo está sendo feito em nome da “propriedade intelectual”(sic) mas tem consequências muito mais amplas, para as quais as pessoas não atentam porque para 90% do mundo computador é “coisa de nerd”, isso é muito, muito perigoso para o futuro da liberdade individual.

12 – Como o TCPA é um padrão criado por diversas grandes empresas, e não exclusivamente Microsoft, você acredita que este padrão, da maneira que se encontra possa ser adotado também pelas distribuições GNU/Linux sem criar algum transtorno, seja ele filosófico ou técnico?

Olha, o TCPA da maneira como foi apresentado até agora não traz nenhum benefício de segurança, isso é pura retórica, ele trata sim, de proteção de conteúdo digital. A maior falha(?) no projeto é que não se especificou até agora quem poderá certificar programas para serem executados, e se os usuários terão o direito de escolher em quem confiar. Se nos empurrarem mais um esquema do tipo da certificação digital para sites seguros, em que existem dois ou tres “indicados” pela indústria como “aptos” a emitir certificados, então teremos sérios problemas. Se pudermos emitir nossos próprios certificados e mantivermos a possibilidade de desligar completamente estes recursos do hardware, talvez possamos fazer uso dele, senão seu kernel terá que ser assinado por uma “entidade certificadora” para que ele possa rodar no seu micro, e a possibilidade de você mesmo modificá-lo ou compilá-lo de forma a atender suas necessidades perderá o sentido, este é o maior medo.
E outra, quanto custará se tornar uma entidade com direito de assinar software? Isso tende a tornar a computação exclusividade das grandes corporações, e não deveria interessar ao consumidor em geral, o problema é que nem todos ligam pra isso, talvez por ignorar a importância do software em suas vidas.

13 – Deixe uma frase ou pensamento para a comunidade:

Minha assinatura de e-mail, que muita gente acha engraçada por conter “maçãs”, mas é assim mesmo a citação, e não tem fundo “anedótico” 😀

“Se eu tenho uma maçã e você tem uma maça e nós trocarmos maçãs, cada um de nós continuará tendo apenas uma maçã, mas se eu tenho uma idéia e você tem uma idéia e nós trocarmos essas idéias, cada um de nós passará a ter duas idéias” –George Bernard Shaw

Viva o software livre 😀

14 – Bem Maçan, muito obrigado pela oportunidade de entrevistá-lo. Espero que continue crescendo cada vez mais junto à comunidade…

Muito obrigado, e muito sucesso para o pessoal do FreeCode-BR e para todos que lerem este artigo até aqui 😀


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