Eduardo Maçan, sobre tecnologia, arte e liderança humanizada


Há alguns dias, o Marcelo Khoury, um profissional de produtos e mentor gabaritado com quem já tive o prazer de trabalhar me convidou a falar um pouco sobre minha carreira e motivações para uma série de entrevistas que foram publicadas no linkedin.

Fiquei muito feliz pelo convite, que topei sem hesitar. Segue a entrevista na íntegra, para os arquivos.


Com mais de duas décadas dedicadas ao universo de produtos digitais, Eduardo Maçan construiu uma carreira notável liderando equipes em algumas das principais plataformas da internet brasileira. Entre códigos e estratégias de negócio, ele traz uma visão única sobre como a tecnologia e a arte podem se entrelaçar para criar produtos verdadeiramente impactantes.

Nesta entrevista exclusiva, Maçan compartilha insights valiosos sobre liderança técnica, o fenômeno atual da IA generativa e os desafios de se construir plataformas de produto escaláveis. Mas não para por aí: ele também nos presenteia com reflexões surpreendentes sobre saúde mental na tecnologia e como a apreciação da arte clássica pode ser um diferencial na vida de um profissional de tech.

E você sabia que tudo começou com uma paixão infantil por robôs e naves espaciais? Em um papo franco e inspirador, Maçan revela como transformou esse sonho em uma carreira sólida, incluindo um momento decisivo onde quase deixou seu crachá na mesa do chefe e foi embora – uma história que todo profissional de tecnologia deveria conhecer.

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Marcelo Khoury: Maçan, você poderia se apresentar e compartilhar um pouco da sua jornada em tecnologia? Uma parte eu conheço, mas seria bem legal ouvir diretamente de você.

Eduardo Maçan: Sou Engenheiro de Computação e passei a maior parte da minha carreira em produtos digitais, principalmente no segmento de mídia. Acho que o fio condutor até aqui acabou sendo  plataformas e produtos que atendiam grandes volumes de audiência online. Nos últimos 15 anos sempre atuei nos “top 10” da internet brasileira, mas nem sempre foi assim, eu tive uma fase mais tranquila no começo da carreira em que eu pude me dedicar bastante ao Linux e ao movimento Open Source.

Eu tive muita sorte de conhecer a Web e o Linux num momento inicial, quando eu também estava começando na Universidade (em meados de 1993!). Tenho um pouco de saudades dessa época ao redor do ano 2000. Acho que a migração da tecnologia para a Cloud tirou visibilidade do movimento Free Software/Open Source que é a base de praticamente toda a tecnologia que usamos hoje, mas eu pude me divertir bastante.

Marcelo Khoury: O que fez você perceber que tecnologia era, de fato, para você? Em algum momento considerou outra carreira? Adoro curiosidades!

Eduardo Maçan: Cara, não. Eu encontrei minha vocação ainda muito criança. O que eu queria era estar entre robôs, naves espaciais e computadores -ou o que mais perto disso existisse de verdade- e tudo evoluiu a partir daí. Minha mãe me deu um curso de programação aos 11 anos, depois eu fazia programas no caderno e simulava “de cabeça” até eu ter meu primeiro computador 2 anos depois… Eu persegui essa intuição, esse desejo, e as portas foram se abrindo até desembocarem na Universidade. Se eu tive dúvidas ou pensei em outra profissão? Não. Em alguns momentos de revolta eu até desejei ter sido advogado, mas se você me permite o trocadilho,  eu acho que escolhi direito.

Marcelo Khoury: Que bom, foi uma excelente escolha! Como eu sei que você gosta de contar histórias e faz isso muito bem, você se lembra de algum caso onde tenha pensado “agora a casa caiu!” e como deu a volta por cima (caso tenha sido possível rs)?

Eduardo Maçan: Certa vez eu tinha um projeto estratégico nas mãos, que dependia do buy-in de uma liderança principal P. Uma outra Figura de Poder, vamos chamá-lo FP, que tinha interesses conflitantes com este projeto marcou uma reunião colada a minha apresentação decisiva para P. Quando cheguei, ficou claro que FP havia me colocado diante de toda sua equipe para me constranger a mudar meus planos e assumir a agenda que era de interesse dele.  O “Agora a casa caiu” que você descreve passava na minha cabeça enquanto eu era bombardeado por FP em uma sala e aguardado por P na outra.

Como eu superei? Eu tive uma fração de segundo para decidir qual seria meu posicionamento.   Situação extremamente desconfortável, provocada por alguém com muito mais poder que eu, com o claro propósito de me desestabilizar psicologicamente para me fazer ceder. Eu escolhi defender o meu ponto de vista e os alinhamentos que eu tinha feito para viabilizar o projeto. A reunião com FP invadiu o tempo reservado da reunião com P e provocou um revés momentâneo, mas no fim, o projeto importante foi adiante.

Confesso que ao sair daquele “combo” eu tirei o crachá do pescoço e fiquei olhando pra ele na minha mesa por um tempo. Por pouco não me levantei, deixei o crachá na mesa do meu chefe e fui embora pra não voltar no dia seguinte. Isso faz muuuuito tempo, mas eu ainda penso nesse dia e no que ele ensinou pra mim em termos de ética (e de falta de) e sobre defender seus valores.

Marcelo Khoury: Realmente você teve muita presença de espírito e coragem, parabéns! E qual foi o erro mais épico da sua carreira?

Eduardo Maçan: Eu não cometi grandes desastres (ou talvez tenha memória seletiva? hahaha) mas eu lembro de duas situações constrangedoras. No meu primeiro dia de estágio como administrador de redes Unix, com várias janelinhas de terminal abertas, eu dei um comando na janela errada e acabei “só” apagando o principal arquivo do sistema de um servidor importante da Unicamp na época. Nada parou de funcionar, mas se alguém desligasse aquela máquina ela não ligaria de volta. Avisei o chefe bastante constrangido e ele, com uma santa paciência, voltou o backup. PRIMEIRO DIA de estágio. Também teve uma vez que um “update sem where” em produção (essa vai para meus amigos DBA) fez com que 3.500 alunos de uma escola tivessem um só responsável, mas essa eu consegui resolver rápido… só ficou o frio na espinha pra ser recordado.

Marcelo Khoury: E se esse erro fosse um professor, o que ele teria te ensinado e como ele moldou a sua forma de pensar hoje?

Eduardo Maçan: Eu lembro do erro do estágio e do constrangimento que senti. Eu estava começando, já tinha bastante conhecimento e queria demonstrar valor na prática… falhei miseravelmente, ao menos no meu ponto de vista. A calma e a didática com que a pessoa que me orientava lidou com a situação… acho que foi o meu primeiro aprendizado em ambiente profissional. É o tipo de coisa que você recebe e quer ser capaz de passar adiante. Eu sempre gostei muito de interagir com quem está começando, de aconselhar, e esse dia teve uma partezinha nisso.

Marcelo Khoury: Qual conselho você gostaria de ter recebido no início da sua carreira?

Eduardo Maçan: “Não é tudo sobre você, não se leve tão a sério” e “preste atenção na maneira como o dinheiro troca de mãos no mercado e como seu conhecimento de tecnologia pode ajudar nisso”. A relação entre negócio e tecnologia é uma relação de sustentação mútua. A quantidade de negócios que desapareceram por não aplicarem tecnologia adequadamente só não é maior que a quantidade de  inovações tecnológicas que morreram por não encontrar um modelo de negócio adequado. As pessoas mais bem sucedidas que conheço são as que entenderam essa dinâmica mais cedo.

Marcelo Khoury: Excelente reflexão! Durante o tempo em que trabalhamos juntos, vi em você um líder de engenharia maduro. Não apenas com um vasto conhecimento técnico, mas também um entendimento profundo das alavancas do negócio. Por sinal, você acabou de mencionar isso: visão clara do futuro do produto e das equipes, além de um cuidado genuíno com as pessoas. Com base nisso, o que um líder de tecnologia precisa ter para ganhar a sua admiração?

Eduardo Maçan: Hahaha, fico lisonjeado pela sua percepção.  Os líderes de tecnologia que eu mais admiro são aqueles que eu identifico como hábeis em construir e sustentar pontes de comunicação bidirecional (ênfase aqui) entre os domínios de tecnologia e negócio dentro de uma organização. Não é algo que se aprende em livros e cursos e é algo que tem equilíbrio muito sensível, é difícil construir e ainda mais difícil de se manter em pé. Se você consegue isso e seu olho ainda brilha quando fala da tecnologia “por baixo do capô”, tem provavelmente uma dose da minha admiração.

Marcelo Khoury: Qual superpoder você ainda quer desenvolver e quem você tem como referência?

Eduardo Maçan: O superpoder da persuasão absoluta! Hahahaha. Brincadeira. Lembro de ter lido por acaso um livro sobre persuasão quando era adolescente e ele começava com uma distinção clara entre persuasão e convencimento. O convencimento tem um caráter racional, de mudança de direção, praticamente uma queda de braço. Já a persuasão é sedutora e se comunica com instintos mais primitivos.

Um bom comunicador precisa saber usar esses dois recursos com habilidade. Acho que o Simon Sinek foi muito feliz em seu “Start with Why”, admiro o poder de comunicação do Barack Obama e do Ronald Reagan (esse eu vi “a posteriori”) e já vi muitos exemplos em que o Steve Jobs foi um comunicador fantástico. Nutro uma “invejinha admirativa” dessas pessoas.

A comunicação clara, envolvente e eficaz é, de fato, um superpoder.

Marcelo Khoury: Me convenceu rs! Agora, mudando de assunto: estamos vivendo um momento de aceleração tecnológica sem precedentes, especialmente com o uso de tecnologias como LLM. Por outro lado, sabemos que muito do que se discute hoje não é exatamente novo. Por que agora e não antes?

Eduardo Maçan: Massa crítica. As pesquisas que culminaram nessa chegada “bombástica” das LLMs ao mercado pelas mãos da OpenAI já vinham tendo publicações relevantes há pelo menos 10 anos. Durante meu mestrado lembro de ter lido sobre alguns resultados bem interessantes de pesquisas que pareciam “mapear a estrutura semântica da linguagem em um espaço multidimensional” e que permitiam um tipo de “aritmética conceitual”. Coisas como subtrair a palavra “Itália” da palavra “Roma”, adicionar a palavra “França” e obter “Paris” como resultado. Bem, sabemos onde isso veio desembocar.

A evolução e escala que a produção de GPUs ganhou nos anos anteriores com a demanda das criptomoedas também teve sua parcela de contribuição, mas acho que foi principalmente a “ousadia” da OpenAI de apresentar para o mercado um produto caro de se manter e evoluir, sem um business case concreto e sem guardrails eficazes  foi o “tipping point”.

O que estamos vendo hoje é resultado mais da estupefação que a tecnologia causou no público em geral do que de qualquer outra coisa. E não é que a OpenAI foi pioneira e criou algo único e novo. Todas as grandes empresas de tech que investem em pesquisa já vinham trabalhando nesse tipo de tecnologia, tanto é que em poucos meses tivemos uma enxurrada de novos produtos vindos dos grandes players. A questão é que eles não viam ainda um business case viável, se viram forçados a embarcar porque passaram a ser questionados por todos os lados. Todos queriam saber como eles se defenderiam frente ao que o público interpretou como “o grande sucessor tecnológico” de tudo o que existia.

Marcelo Khoury: Existe alguma tecnologia que tenha chamado a sua atenção neste momento?

Eduardo Maçan: Impossível não voltar o interesse para essa onda de I.A. generativa que invadiu todos os domínios de aplicação. Eu tenho tentado ajudar as pessoas a separar a ferramenta do hype e, pra isso, eu preciso atualizar e reavaliar minhas próprias convicções. Me interesso particularmente no tema de código gerado por I.A., no debate ao redor da geração de imagens, áudio e vídeos fotorrealistas, que tem implicações éticas e mesmo de segurança muito importantes. A geração de música automática é hoje a aplicação de A.I. generativa que mais me impressiona.

Marcelo Khoury: Existe algum conceito mal-compreendido pela indústria de produtos e tecnologia hoje? Quanto você acha que essa incompreensão está custando às pessoas e empresas?

Eduardo Maçan: Plataformas de produto. Na teoria é uma coisa bastante lógica: por que eu vou desenvolver, manter e evoluir a mesma coisa 3 vezes em produtos diferentes se posso desenvolver uma vez só e usar em 3 produtos? O conceito deveria ao menos ser óbvio pra quem é de tech, já que a gente aprende a evitar repetição de esforço e código e separar “componentes” desde as aulas iniciais de programação.

A realidade, no entanto, não é tão óbvia assim. Não é fácil executar a estratégia de componentes e plataformas de produto, tampouco identificar o momento em que ela se torna imprescindível. O fato é que em uma empresa que cresce e amplia seu leque de produtos, que passa a ter centenas de pessoas atuando em tech… se você não adota uma estratégia de plataforma, o acúmulo de complexidade e decisões de curto prazo passam a ter reflexos negativos na capacidade de entrega da organização. Esse cenário não melhora sozinho, é preciso gerir a arquitetura de tecnologia e a estrutura organizacional  de maneira coordenada.

Toda empresa tech que cresce VAI passar por essa dor. Embora alguma literatura importante tenha surgido nos últimos anos, ela ainda é fragmentada e sempre toca o problema de maneira parcial.

Marcelo Khoury: Muito obrigado pela explicação! Lembro de você ter mencionado um período de muita pressão emocional em um projeto. Como esse é um tema sensível e com tantas pessoas passando por isso em silêncio, você poderia compartilhar sua perspectiva?

Eduardo Maçan: A gente precisa ter alguma noção dos nossos limites. Já fui além dos meus algumas vezes e já acabei somatizando meu estresse de maneira bem física. Hoje eu tenho mais atenção a mim mesmo, pratico esportes, busco estabelecer limites claros e me desconectar de verdade sempre que posso, para manter o estresse e a ansiedade em níveis saudáveis.

Conselhos? Ouça os sinais das pessoas mais próximas, muito provavelmente elas percebem melhor do que você se você está passando dos seus limites. Cuidado com esse papo pseudo motivacional que “pressão transforma carvão em diamantes”, não é raro que o efeito da pressão excessiva seja mais parecido com o que aconteceu com aquele submarino que visitava o Titanic. Tem que gerenciar.

Marcelo Khoury: O que te inspira? Existe alguma prática que te conecta com algo maior?

Eduardo Maçan: Arte. Eu percebi que o canal que torna concreta essa “conexão com o divino” pra mim é mesmo apreciar a arte, em sua expressão mais elevada. Pra mim é impossível assistir uma apresentação na Sala São Paulo ou no Teatro Municipal sem experimentar uma espécie de “arrebatamento contemplativo”… acontece com frequência em museus também. Eu devia me dedicar mais a estudar e quem sabe até arriscar mais e produzir arte, mas acabo sempre priorizando meu tempo para assuntos mais profissionais.

Marcelo Khoury: Que pergunta você gostaria de ter respondido? Pode fazê-la e depois responder

Eduardo Maçan: Qual seu gênero preferido de cinema? Cite 5 filmes recomendados.

Gênero: Sci Fi (obviamente).

Sem ordem de preferência entre eles:

  • The Day the Earth Stood Still  (a versão de 1951, não a com o Keanu Reeves)
  • Forbidden Planet (1956, com um Leslie Nielsen jovem e galã. Sério.)
  • 2001 (1968)
  • Blade Runner (1982)
  • Wargames (o de 1983, não o de 2008)
  • Bonus:  Metropolis (1927) e Frankenstein (1931)

Por que? Acho que cada um deles teve uma interpretação relevante, às vezes premonitória (ou influenciadora?) de certos temas que continuam reverberando. Eu frequentemente recorro a esses filmes e acho que vale vê-los e refletir sobre seus pontos de vista ao menos uma vez.

Marcelo Khoury: Excelentes dicas, super obrigado! Maçan, foi uma honra conversar mais uma vez com você, dessa vez de forma pública e aprender um pouco mais sobre tecnologia, arte e sobre carreira. Sou seu fã, você sabe disso né?

Eduardo Maçan: Hehehehe, é mútuo. Gostei muito de revisitar esses lugares todos por onde você me conduziu, tomara que eles também sejam interessantes para mais amigos por aí.

Marcelo Khoury: Legal, valeu demais!


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