Três pontos, um plano.

Na geometria euclidiana 3 pontos não colineares determinam um plano de forma única. Sem me desculpar pelo joguinho com a palavra “plano”, também são três os pilares fundamentais que apoiam a condução de produtos digitais: A visão de Negócio, de Produto e de Tecnologia.

Nenhuma dessas disciplinas é suficiente sozinha. A partir de determinado tamanho as empresas começam a se organizar em equipes e componentes (uns mais próximos e outros mais distantes do cliente), e os alinhamentos começam a se tornar complexos. Muitas vezes, os times não tem proximidade dos três assuntos. Às vezes a organização como um todo falha em equilibrar as três visões.

O meu framework mental é observar como se dá a relação e priorização dessas três forças ao longo do tempo, independentemente se estou observando um time, um componente ou a organização inteira. É um padrão que deveria estar sempre presente, independente do nível de zoom, como em um fractal. Um Diagrama de Venn dessas três disciplinas traz oportunidade para algumas reflexões interessantes.

Interseção A – “A busca Pelo Graal”

Acho que é fácil concordar que todos gostaríamos de viver no mundo “A” do diagrama, em que Negócio, Produto e Tecnologia estão alinhados, cada um com capacity e priorização adequados e em equilíbrio. Minha experiência é que essa situação é instavel e existe apenas durante certos períodos. A dinâmica de mercado é turbulenta e frequentemente desequilibra o pêndulo se passa mais tempo fora desse ponto do que dentro.

Embora as interseções B, C e D sejam visitadas com frequência, o esforço deve ser o de não se manter ali. A permanência em um desses espaços fere a evolução dos produtos digitais e traz alguns efeitos a que todos já fomos expostos, seja como participantes do jogo ou como consumidores.

Vou me concentrar nas situações em que uma das 3 visões está prejudicada em relação as outras duas.

Interseção B – Produto não é prioridade.

O “mundo sem produtos” dessa casa é bem conhecido, era praticamente a norma na maioria das empresas dos anos 90 e 2000 que depois passaram por uma apressada “transformação digital” e muitos negócios tradicionais ainda estão estacionados aí. Esse mundo foca em entrega e prazos visando features, melhorias e objetivos de negócio pontuais e tende a experimentar uma atuação mais reativa da tecnologia.

Não importa o quanto a jornada do usuário final seja complexa ou trabalhosa, contanto que ele tenha algum caminho para realizar o que precisamos que ele realize. Aposto que você usa pelo menos um produto assim, uma parte não desprezível dos produtos para o público corporativo infelizmente vive aqui, o incentivo de trazer o ponto de vista do usuário para o centro é reduzido pois quem usa estes produtos geralmente não é quem detém a decisão de compra.

Não se encontram produtos com grande engajamento ou afinidade nessa interseção.

Uma outra disfunção comum nesse espaço é quando o papel de produto até existe, mas na verdade atua como intermediário entre negócio e tecnologia. É na verdade um papel de gestão de projetos renomeado. Não é um cenário muito gratificante para um profissional de Produto.

Interseção C, o Negócio não é Prioridade.

O mundo que prioriza produto e tecnologia, sem uma visão clara de negócio é onde fica a vala comum das grandes ideias. É fácil listar produtos muito bons que falharam por não encontrar uma fatia de mercado, por serem mais caros do que o mercado estava disposto a pagar, por que o mercado consumidor ainda não estava preparado para entendê-lo, etc. É um cenário justificável quando você está fazendo apostas, experimentos, testando rápido e pivotando pra achar o nicho que vai permitir se estabelecer, mas a permanência neste cenário tem uma vida curta.

Ficar tempo demais nesse lugar é o que leva embora produtos como o CueCat (RIP 2001) e o Humane AI Pin (RIP 2024), só para citar um antigo e um recente. Se você não resolve um problema real de mercado, não é financeiramente viável ou não captura oportunidades de receita, você está fora. Simples assim.

Mesmo componentes estruturais, de alta especialização técnica, precisam estar conectados com uma visão de negócio do mesmo modo como Negócio e Produto também precisam ter ciência e envolvimento (ainda que indireto) com as realidades da Tecnologia.

Interseção D – Tecnologia não é Prioridade.

A casa D é bem comum. Muitas empresas, produtos e times operam com alguma taxa de sucesso mesmo estando permanentemente aqui. Um produto digital amado pelos usuários, que tem um bom market fit, mas é construído sem atenção à tecnologia terá problemas de escala, de resiliência e de confiabilidade. Ele até terá uma excelente evolução inicial, mas se tornará lento de evoluir, caro de se manter e ninguém entenderá exatamente o por quê.

Algo contraintuitivo para quem não é de tecnologia é que componentes de software “estragam”. Não é que software se deteriore como uma banana esquecida na fruteira, é que o mundo avança rapidamente ao redor de um software que está parado. Diferentes momentos do produto ou do negócio irão demandar soluções de software diferentes.

Sem cultivo adequado e uma visão de tecnologia consistente a tendência é que soluções pontuais vão se acumulando e passam a interagir de maneira espúria entre si. O efeito de novas modificações vai se tornando cada vez mais difícil de antecipar e a partir de algum momento ninguém mais conhece o todo.

A prolongada falta de atenção à arquitetura de software e sua evolução também traz como consequência a progressiva e constante perda de agilidade, velocidade e resiliência. Mudanças aparentemente simples se tornam custosas e demoradas com um custo de refatoração que aumenta proporcionalmente ao seu tempo de adiamento.

Em algum momento o custo e o tempo para resolver este tipo de situação se torna “alto demais”. Um dos sintomas de se estar indo nessa direção é ouvir “é melhor jogar fora e fazer outro” com cada vez mais frequência.

E pra concluir voltamos ao ponto A , onde todos gostaríamos de viver. Ele é instável, não dá pra ficar nele o tempo todo, mas é onde os responsáveis por cada um dos três papéis deveriam sempre se esforçar para estar.

É necessário dedicar atenção exclusiva ou despriorizar um dos três pilares em diversos momentos ao longo da vida de um produto digital, o fundamental é buscar compensar o quanto antes, direcionando o pêndulo para uma das outras intersecções tão logo quanto possível.

É assim que produtos lucrativos, desejáveis, viáveis e que sobrevivem aos efeitos do tempo são criados.


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Comentários

Uma resposta para “Três pontos, um plano.”

  1. Avatar de Cláudio Luz
    Cláudio Luz

    Perfeito! Vou usar como referência para debates internos por aqui. Obrigado por compartilhar as experiências.

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