…que é o ser humano.
Prólogo
Quando cheguei em casa anteontem meus pais estavam olhando espantados para a TV. Mal entrei na sala e me perguntaram: “Você viu o que está acontecendo em São Paulo? Caiu um avião em Congonhas!”
Olhei pra TV e vi a cobertura da Bandeirantes, devia fazer mais ou menos uma hora que um avião ainda não identificado havia se chocado contra o depósito da TAM e um posto de gasolina. O repórter informava que um avião de pequeno ou médio porte havia saído da pista e se chocado do outro lado da avenida.
Nisso mostraram um close das chamas altas e nitidamente vi o que me pareceu ser a cauda do avião, vermelha com a letra T em branco em meio à fumaça. “Avião pequeno que nada!” eu disse, “Parece que é da TAM, e a TAM só voa com Fokker 100 e A320”, pelo menos foram os dois únicos em que eu voei pela TAM.
A partir daí comecei a me incomodar com maneiras e atitudes e depois de acumular algumas, resolvi escrever esse post.
Capítulo 1 – O julgamento precipitado.
Nisso entra alguém pelo telefone ao vivo pra dizer, ainda que hesitante, algo como: “A pista foi entregue sem o grooving! Se tivesse grooving esse acidente não teria acontecido”. Foi aí que eu tomei conhecimento da existência de “gooving”. Um avião de pequeno porte havia derrapado no dia anterior, difícil não associar uma coisa à outra. Ainda mais com o nosso histórico aeronáutico dos últimos 10 meses e o ” relaxa e ‘aproveita’ ” ministerial.
Sim, a pista é curta. Sim, pousar em congonhas é algo no mínimo incômodo porque você mal toca a pista e já sente o efeito máximo do freio e da reversão da turbina e antes de dizer “aeroporto internacional de guarulhos” você já está taxiando pro desembarque. Ao contrário de aeroportos maiores em que o taxeio parece maior que a própria viagem. Mas ninguém desliza por 1Km e consegue atravessar uma avenida, nem derrapar e atravessar uma avenida batendo na parte de cima de um edifício após o fim da pista.
Era óbvio pra mim que o piloto tenha tido problemas durante o pouso e tentado arremeter, voou baixo sobre a avenida, não conseguiu sustentação, provavelmente se inclinou pra esquerda e aí atingiu o prédio. Eu suporia falha de equipamento como a primeira opção pra esse acidente (falha humana como segunda, bem menos provável), mas alguém já estava na TV dizendo que se houvesse “grooving” isso não teria acontecido.
Eu concordo que Congonhas não é o melhor dos aeroportos principalmente em localização e que se houvesse mais 1Km de pista haveria provavelmente espaço para uma arremetida segura. Mas eu não posso afirmar nada, não sou piloto (exceto de simulador) e não sei o que aconteceu, só a análise da telemetria do avião vai dizer o que houve. O fato é: Ele não desacelerou como devia em terra e ninguém tem como dizer o por quê, mas já havia gente na TV disposta a dar um “diagnótico preciso”.
Capítulo 2 – A “solidariedade” genérica
Pouco depois já havia umas 10 comunidades no orkut sobre o acidente, expressando “luto” e “solidariedade”. Algumas já contavam com centenas de inscritos, a maior com mais de 1000. Uma delas, menor, se intitulava “*O F I C I A L*”
Nelas pessoas comentavam o que viam na TV e ficavam procurando coisas como somar e dividir números e datas pra achar 666 e “coincidências” numéricas um tanto forçadas entre o número do voo e o número do prédio onde ele caiu e outros absurdos.
Uma outra tendência era de pessoas que criavam novas comunidades sobre o acidente divulgando suas comunidades e pedindo: “ó gente, se inscreve aí pra me ajudar”. “Me ajudar” com o quê, cara pálida? Com seu sonho de ter uma “comunidade de sucesso” no orkut?
Algumas comunidades até unem desastres “voo 1907 e 3054”, a maioria das pessoas dessas comunidades dando informações provavelmente nunca foram a São Paulo, nunca voaram e nem sabem chegar à av. Washington Luis sozinhas. Ou nem têm idade pra ir sem que a mãe deixe e vá junto.
Capítulo 3 – A “solidariedade” específica.
Divulgada a lista de passageiros e tripulação na internet se iniciam as caças aos perfis das vítimas no orkut. Uma visita a alguns perfis mostram já vários scraps do tipo “descanse em paz”. Alguns nomes da lista eram bem comuns então em diversos perfis de homônimos você encontrava scraps do tipo “Seu nome está na lista da TAM, espero que não seja você” – mas se for descanse em paz – não é mesmo? Só faltava completarem.
O pior, você visita alguns perfis, pega você mesmo uns nomes da lista pra procurar e encontra sempre as mesmas pessoas deixando scraps de “fique com Deus”, “você está em um lugar melhor”, “não será esquecido” e torcendo “pra não ser você”… “força para a família”.
Capítulo 4 – Os aproveitadores
Em poucas horas, spammers começam a enviar “boletins falsos” da tam instruindo a “clicar aqui” para “ver o vídeo da Infraero” (e instalar toda sorte de keyloggers e malwares)
Capítulo 5 – O sensacionalismo
No dia seguinte, a comoção e perplexidade pela catástrofe se apagaram junto das chamas, aí começa o sensacionalismo, recordam-se previsões, acham um pai de santo que previu a catástrofe, um que se sentiu mal e transferiu o vôo, e uma “previsão” da época da gol, que haveria um acidente maior no segundo semestre desse ano.
Como o temor pelo acidente já está esfriando é necessário trazer à tona novamente a sensação de perigo à população. Se noticiam coisas pequenas para ajudar no sensacionalismo, como o avião que desistiu de pousar porque estava alto demais e resolveu reiniciar o procedimento de descida. Mas é mais assutador dizer “Fokker 100 da TAM arremete ao se aproximar de congonhas”, né não?
Capítulo 6 – A morbidez
Alguém com quem eu comentava sobre o que iria escrever disse que pessoas estavam criando perfis falsos com os nomes das vítimas e me mostrou alguns. Eu me pergunto: “Pelas barbas do profeta, pra que isso?!?!?!?”. Que tipo de motivação leva alguém a criar um perfil com o nome de alguém que morreu em uma tragédia e teve seu nome divulgado publicamente? Pra ver quem procurava o perfil no orkut? Pra receber scraps de pêsames? Alguns daqueles nomes eram de idosos e crianças que dificilmente teriam um perfil no orkut. Talvez a resposta a esta e outras perguntas possa ser dada pelas pessoas nessas comunidades
Vídeos no youtube começam a pipocar, alguns até com música de suspense e clipes feitos com o flight simulator simulando a chegada de um A320 a Congonhas. Curiosamente encontro simulações da telemetria e áudio da caixa preta do avião da TAM acidentado em 96 no youtube. Achei que esse tipo de coisa fosse confidencial.
Epílogo
Eu volto a afirmar que as pessoas que criaram a internet e vislumbravam um futuro maravilhoso em que todos poderiam ser suas próprias “estações de TV” e geradores e divulgadores de conhecimento se miraram apenas nos cientistas e pessoas cultas a seu redor, realmente capazes de produzir conteúdo. Esses otimistas…
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