Deckard: Isso é uma cobra de verdade?
Zhora: Claro que não! Você acha que eu trabalharia em um lugar como esse se pudesse comprar uma cobra de verdade?
Em uma das cenas mais interessantes de Blade Runner (1982) Deckard (Harrisson Ford) confronta Zhora (Joanna Cassidy), uma replicante. Cena marcante por inúmeras razões, mas pra mim o que ficou foi a surpresa de que uma cobra “de verdade” seria um artigo de luxo naquele futuro distópico e uma “cobra cyborg” não.
A percepção de valor está ligada à utilidade, mas também à raridade, qualidade, exclusividade e preço. A produção em massa de um item tende a torná-lo disponível, comum, padronizado e barato, reduzindo a percepção de seu valor e com frequência de sua qualidade, o sintético se torna banal.
Uma camisa feita sob medida por um alfaiate versus uma camisa comprada em uma grande rede “fast fashion”.
Pão-de-forma do supermercado versus o pão fresquinho da padaria, ou melhor ainda, aquele que a vovó fazia.
Uma peça de artesanato feita por um artista local versus uma lembrancinha de MDF cortada e gravada a laser, quando você está viajando.
A minha epifania foi perceber que passamos a atribuir valor maior ao que percebemos como real, legítimo, tão logo descartamos a avaliação utilitária. O almoço feito em casa e o cheeseburger matam minha fome, mas qual me nutre realmente?
Esta também foi a minha conclusão a respeito da qualidade de imagens, áudio e vídeos gerados por Inteligência artificial. Superior ao que a maioria é capaz de produzir com seus próprios meios, mas sempre mediana aos olhos de especialistas.
Há menos de um ano as “mãos de IA” tinham 7 dedos e nada escrito em “imagens de IA” fazia sentido. Com poucos meses de evolução comecei a questionar a minha percepção inicial. Será que o argumento da “banalização do sintético” ainda valeria? Se sim, por quanto tempo?
Mais alguns meses se passaram e eu estou de novo confiante que a banalização do sintético é inevitável. Com a capacidade de produzir música ao alcance de qualquer um e com vídeos realistas sendo gerados a partir de qualquer intenção, o valor percebido deste tipo de produção de massa vai começar a apontar na direção do zero.
O que eu espero com otimismo para os próximos anos é uma maior valorização da experiência em primeira pessoa. Qualquer um pode gerar uma música, mas poucos dominam um instrumento. Qualquer um pode fazer um filme, mas quantos são capazes de atuar num palco? Quem sabe após uma saturação de conteúdo digital banal a gente aprecie mais a arte feita ao vivo? Música, teatro, cozinha… além de consumir talvez a gente até busque produzir, usando as próprias mãos.
E é exatamente por isso que há mais ou menos um ano eu decidi que iria ilustrar meus posts mesmo sem ter técnica artística. O meu desenho tem algo só meu, o meu texto pode até capotar nas regras da boa redação e gramática, mas leva um pouco da minha personalidade com ele.
É isso que vai nos diferenciar dos algoritmos.
Em tempo: A história de Blade Runner acontece em 2019.
Comente de volta!